Relações
A sala estava cheia, um pano fazia vez de parede sobre a cintura da minha esposa, separando a parte inferior da superior. Do lado de cá do muro, uma quase-mãe assustada tentando imaginar o que os médicos estão fazendo com ela, ao seu lado, o quase-pai. Eu.
O quase-pai pensava nos bons tempos, na tradição. O quase-pai gosta muito de tradições. Aprendeu a respeitar tradições quando jovem, ao notar o valor e o respeito que pessoas então melhores do que ele próprio, davam a tradição do seu estado. Via o semblante sisudo do gaúcho. Aquela rudeza natural, não produto do embrutecimento do homem, mas do lidar constante com a vida. Via a masculinidade que emanava do homem livre, forte, pelejador, austero. Entendeu que ele próprio fazia parte desse universo masculino, queria ser como o gaúcho, porque ele era como o gaúcho, e então viu que a tradição que o gaúcho trazia consigo era em grande parte o que norteava a sua vida. Respeitou a tradição, assim que a conheceu nesse estado ainda rústico.
Mais tarde, ao viver no país de seus avós, viu uma tradição ainda mais antiga, mais rebuscada pelo uso, tornada complexa pelos milênios. Via os japoneses valorizarem coisas estranhas para ele, rituais que não lhe faziam sentido. Mas observou que essas tradições traziam equilíbrio aos seus praticantes, e pacificavam um povo que em guerra era cruel e sangrento. A tradição nesse ponto, o cativou ainda mais.
Na religião, no seu contato com Deus, o quase-pai entendeu que a tradição religiosa, ainda que incapaz de sustentar um relacionamento verdadeiro com Deus, pois não era essa a sua função, tinha a capacidade de explicar melhor como ter esse relacionamento do que todos os modismos religiosos juntos. Para o quase-pai, as tradições da sua fé, valem mais do que todas as "idéias novas".
Sim, o quase-pai, gosta de tradições, sente que elas emprestam integridade ao homem, e naquele momento sentado ao lado da quase-mãe, pensava no costume antigo, onde ao pai cabia a espera numa sala adjacente, reunido com os amigos, bebendo um wisky e fumando um charuto de boa marca, falando sobre a vida, revelando aos companheiros suas pretensões futuras e, mais do que tudo, tentando (ou não) disfarçar sua ansiedade.
Tradições abandonadas, restava ficar ali ao lado da quase-mãe "dando apóio", o que se resumia a ficar tocando na testa e no braço e repetindo frases prontas que tinha visto em algum filme classe B. Não sei se a quase-mãe se sentiu mais protegida pelo meu arrazoado, só espero que não tenha notado a cena bem ridícula que se formou.
Do outro lado do muro de tecido, os médicos conversavam banalidades, como numa reunião de amigos tratavam de colocar o papo em dia. Indagavam-se pelas novidades, faziam sugestões de férias uns aos outros, especulavam quem seria o novo diretor do hospital. Parecia uma cena do E.R. a certo ponto me indaguei até onde aquilo não passava de uma farsa, não era possível falarem de banalidades tais e manterem aquela expressão de tensão nos rostos deles. Aquilo simplesmente não poderia ser normal. Mas qual seria a explicação? Estariam eles fazendo alguma manobra diversionista? Tentando me passar uma imagem de tranqüilidade com seu papo bucólico para que eu não me apavorasse? Se eles tivessem a mínima idéia do meu sangue frio oriental saberiam que tais manobras são desnecessárias.
Mas aquele linguagem toda poderia ser alguma espécie de código, a frase: "Quem será o novo diretor do hospital?" poderia significar algo como: "Quem é que vai puxar o neném?" "O melhor lugar desse verão é Bariloche" significaria algo como, "o corte tem que ser mais alto". Não sei ao certo, ainda não consegui decifrar a questão toda, mas essa gente não é esperta o suficiente para me enganar.
Em meio a essas questões, o guri nasceu. O quase-pai, deixara de ser quase-pai, e a quase-mãe já é simplesmente mãe.
A cena é brutal, nenhuma palavra expressa melhor para mim do que essa. A criança nasce assustada, arrancada de seu refúgio por uma força que ela não entendia bem. Do escuro e protegido lugar em que habitava para esse mundo de sons, cheiros, toques, gostos e luzes. As luzes em particular o irritavam, queria abrir os olhos, como estava habituado a fazer no interior da mãe, mas a luz o violentava, machucava suas retinas, criava imagens sem sentido em sua mente obrigando-o a fechar os olhos. O ar entrando em seus pulmões pela primeira vez deveria ser algo mais violento ainda, deveria arder, como arde o ar que respiramos em ambientes excessivamente frios. Ao expelir todo o líquido do seu interior, ele começou a chorar e gritar, com toda a força dos seus pequenos pulmões. A luta pela vida começa cedo, brutalmente cedo.
Não sei direito o que os médicos pretendiam ao mudar os costumes vigentes e introduzir o pai no quarto do parto para ver a criança nascer. Acredito que seja alguma besteira formulada por algum psicólogo que teria inventado alguma teoria babaca de criar alguma ligação entre o pai e a criança. Esse é o meu maior defeito, minha tendência é a de subestimar as teorias de aceitação geral, principalmente as modernas. Se algo "cheira" a concepções "modernas", faço uma cara de nojo. Sempre faço cara de nojo quando leio Freud ou Frei Betto. Mas bem, seja qual fosse a idéia desse psicólogo oportunista, a experiência me ensinou algo muito importante. A vida é muito, muito frágil. Minha primeira reação é querer proteger a criança, afastá-la dos perigos, é querer fazer de tudo para que ele mesmo vença essa luta pela vida que começou tão cedo. Acho que ao me descobrir pai, juntamente descobri qual o meu maior papel, minha principal função quanto a ser pai. É auxiliar na luta pela vida, que meu filho apenas começou.
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