sábado, 6 de setembro de 2003

Screewtape Letters
Parte do Livro de C.S. Lewis, que transcrevo aqui.
Nesse livro, Lewis faz a parte de um diabo velho que por intermedio de suas cartas ensina um diabo aprendiz a arte de tentar o ser humano. Tremendamente instrutivo, delicosamente agradavel de ler. Aproveitem

Meu caro Pé-de-cabra,

Tem então "grandes esperanças" de que se tenha estiolado a fase religiosa do paciente, não é? Eu sempre achei que a "Escola de Treinamento" entrara em deterioração desde que deram a presidência ao velho Tinhoso. Agora estou certo disso. Ninguém nunca lhe falou sobre a Lei das Ondulações?

Os humanos são anfíbios - meio espíritos e meio animais. (A teimosia do Inimigo em produzir esse repugnante híbrido foi uma das coisas que determinaram a retirada do apoio que lhe dava Nosso Pai Lá Debaixo.) Como espíritos, eles pertencem ao mundo eterno mas como animais habitam o tempo. Significa que podem dirigir o pensamento para o objeto eterno enquanto o corpo está em contínua mutação, pois estar no tempo significa mudar. Sua maior aproximação da constância, portanto, é a ondulação ¿ a repetida volta a um nível do qual continuamente decaem, uma série de picos e abismos. Se você tivesse observado cuidadosamente seu paciente, perceberia decerto essa ondulação em todos os departamentos de sua vida - interesse pelo trabalho, afeição pelos amigos, apetites físicos, é tudo um sobe e desce. Enquanto ele viver na Terra, períodos de riqueza e vivacidade emocional e física alternarão com períodos de entorpecimento e pobreza. A secura e insensibilidade que seu paciente ora atravessa não são, como credulamente supõe, devidas à sua obra; são simplesmente um fenômeno natural que de nada nos adiantará se você não fizer bom uso dele.

Para decidir qual o melhor uso do tal período, você deve perguntar como o Inimigo irá servir-se dele e realizar o oposto. Ora, você pode surpreender-se ao saber que, nos Seus esforços para possuir permanentemente uma alma, Ele confia mais nos abismos que nos picos; alguns de Seus especiais favoritos atravessaram abismos mais longos e profundos que qualquer outra pessoa. A razão é a seguinte: para nós, o humano é antes de mais nada, comida; nosso fim é a absorção da vontade dele na nossa, o aumento da área do nosso "eu" a expensas do dele. Mas a obediência que o Inimigo exige dos homens é uma coisa absolutamente diferente. É preciso encarar um fato: toda essa conversa a respeito do amor que Ele tem pelos homens e sobre a liberdade deles em Seu serviço não é (como gostaríamos de crer) mera propaganda mas uma verdade pavorosa. Ele realmente quer encher o universo com uma quantidade de nojentas replicazinhas de Si Mesmo - criaturas cuja vida, em sua escala miniatural, seja igual à Sua, não por Ele as ter absorvido mas por suas vontades conformarem-se livremente à dEle. Nós desejamos gado que acabe por tornar-se comida; Ele deseja servos que afinal se tornem filhos. Nós queremos sorver, Ele deseja dar. Nós, vazios, queremos encher-nos; Ele, pleno, transborda. Nossa meta de guerra é um mundo no qual o Pai Lá Debaixo tenha absorvido tudo em si mesmo; o Inimigo quer um mundo cheio de seres unidos a Ele e ainda assim distintos.

É aqui que entram os tais abismos. Você talvez se tenha perguntado por que o Inimigo não utiliza mais Seu poder de estar sensivelmente, no grau que escolha, nas almas humanas. Mas agora você já compreende que o Irresistível e o Indiscutível são as duas armas que a própria natureza de Seu esquema O proíbe de utilizar. Subjugar simplesmente a vontade humana (como com certeza o faria Sua presença, sentida ainda que no grau mais tênue e suavizado), não Lhe serve. Ele não pode arrebatar. Pode apenas convidar. Mas sua ignóbil idéia é comer o bolo o ainda o ter; quer as criaturas unidas a Ele e, ainda assim, elas mesmas; simplesmente cancelá-las, ou assimilá-las, não lhe adianta. Está disposto a subjugar um pouquinho no princípio. Dá-lhes um impulso inicial pelas comunicações de Sua presença, as quais, embora tênues, parecem-lhes grandiosas pela suavidade emocional e fácil triunfo sobre as tentações. Mas não permite que dure muito tal estado de coisas. Mais cedo ou mais tarde retira, senão de fato pelo menos da experiência consciente deles, todos os apoios e incentivos. Deixa que a criatura se ponha sobre os próprios pés - que realize só pela própria vontade os deveres pelos quais perdeu todo o gosto. É durante tais períodos de aridez, muito mais que durante os de plenitude, que elas se vão tornando as criaturas da espécie que Ele deseja. Eis por que as orações oferecidas em períodos de aridez lhe são tão agradáveis. Nós podemos ir arrastando nossos pacientes pela tentação constante, já que os queremos só para a mesa, e quanto mais interferirmos com a vontade deles, melhor.
Ele não pode tentar para a virtude, como nós, para o vício. Ele quer que aprendamos a andar e por isso deve retirar Sua mão; se realmente existir vontade de andar, Ele se agrada até mesmo dos trambolhões. Não se iluda, Pé-de-cabra. Nossa causa jamais periga tanto como quando um humano, sem desejar, mas sempre tencionado, faz a vontade do Inimigo, olha em volta de si e vê um mundo do qual todo vestígio dEle está ausente e pergunta por que o abandonaram, mas continua obedecendo.

Mas é claro que os abismos oferecem oportunidades também para o nosso lado. Dar-lhe-ei, na próxima semana, alguns palpites sobre a maneira de os explorar.


Seu carinhoso tio

Coisa-ruim

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