Surprised by Joy
O dia dos mortos na minha terra é uma data estranha. As pessoas se reunem em volta de túmulos, acendem velas, depositam flores, prantam mais uma vez em memória daqueles que a muito se foram. O caso da minha família era ainda mais particular: sempre íamos para o campo, numa localidade erma, distante a pelo menos uma hora da já erma e distante cidade de Bagé, quase na fronteira com o Uruguai. Lá estavam os restos do meu avó, o sr. Américo, gaúcho de bota, bombacha e mango, homem íntegro, desses que não se vê mais hoje em dia. Morreu antes mesmo que eu nascesse, quando minha mãe era ainda uma garotinha. A causa da morte foi insolação, caso comum quando se tinha que atravessar muitos quilômetros de campo aberto montado num cavalo. Foi enterrado naquele fim de mundo e minha avô e seus 8 filhos partiram de suas terras para a cidade. De certa forma se meu avó não tivesse morrido e desencadeado a diáspora da família, eu não teria vindo ao mundo, nem estaria aqui escrevendo nesse blog, pois foi na cidade que minha mãe conheceu meu pai, acaso esse que seria muito mais complicado caso ela ainda vivesse no campo.
Me lembro em particular de uma vez que, acompanhado de meu pai, rumei alguns dias antes da data da comemoração para limpar os túmulos e cortar a grama do local. Era a primeira fez que fazia tal incursão.
Que idade eu tinha na época? Não sei ao certo: 9? 10? 13? Não sei, não sei, não importa. Apenas me lembro que era novo, muito novo, e que estava apenas despertando para a inteligência, engatinhava quanto ao raciocínio.
Quando chegamos ao cemitério e vi o capim tão alto que quase cobria os túmulos, imediatamente pensei o quanto inocente eu tinha sido todos esses anos que se passaram, pois sempre que voltava encontrava os túmulos limpos e pintados, a grama baixa, as flores frescas. No outro ano, a mesma cena, repetindo-se e repetindo-se desde a primeira imagem que eu tinha na memória de tais viagens. Nunca procurei explicação para tal fenômeno, como que por tantos anos os túmulos se mantinham tão conservados. Achava então, não pelo meu raciocínio mas pela falta do mesmo, que ao sair do lugar esse entrava em animação suspensa até o ano seguinte, quando o tempo reiniciava novamente o seu ataque aos tijolos daquelas construções. Foi a primeira vez que raciocinando concluí que mesmo quando eu não participo de certo evento, esse evento segue seu rumo independentemente da minha consciência do mesmo, não importando se eu estou envolvido no processo ou não. Talvez tenha sido a minha primeira lição de humildade na vida, entendi num instante que minha participação nas coisas tem na verdade um peso muito baixo, que no fundo, eu, o centro do meu universo, era completamente dispensável. Pode parecer pouco, mas tem muita gente adulta hoje em dia que ainda não entende isso.
"Quem se humilha", diz a Palavra de Deus, "será exaltado". E quando o peso da descoberta ainda movia meus pensamentos, fui surpreendido, presenteado, com uma das cenas mais maravilhosas da minha vida.
No retorno para casa, depois do trabalho feito: Um túmulo pintado, as flores mortas trocadas, o capim capinado e algumas cobras mortas, meu pai, na direção do carro, decide que ainda tínhamos tempo e, vendo uma estrada secundária que subia ao cume de um morro, decidiu percorre-la para ver onde ela dava. Pura curiosidade, é uma marca da minha família.
Ao chegar no cume da colina, paramos o carro e descemos -- abaixo, uma cena difícil de ser descrita: Um vale imenso, cercado por morros baixos, mas protetores, o campo coberto de verde de uma ponta a outra, cortado apenas por um rio estreito, de águas rasas e rápidas. No meio do verde, uma única e distante árvore, perto dela continuava a estrada sob meus pés e, ao lado da árvore, uma casinha, quase tapera. No céu, um sol forte e brilhante que cortava as nuvens espessas em certos lugares, criando ilhas de luz em meio às sombras projetadas das nuvens. Um vendo fresco, carregado do odor daqueles campos, impulsionava as nuvens que se moviam vagarosas, preguiçosas, como vacas gordas no pasto.
Vi aquela cena, meus olhos, muito mais jovens do que agora, os mesmos olhos, mas tão diferentes, colhiam, drenavam, absorviam cada pormenor da paisagem. Um gavião ao longe, os movimentos que o vento causava na vegetação, o brilho do sol sobre as águas. Tudo estava ao meu alcance, nada passava despercebido.
Parecia um quadro vivo, como se uma pintura de parede momentaneamente ganhasse vida, -- sim, ela estava viva e parecia falar comigo.
Me lembrei do que estava pensando até a pouco, de que até poucas horas passadas ainda vivia num mundo do qual eu era o único protagonista que importava, o sol, a terra e tudo mais giravam apenas para mim e para nenhum outro. A experiência do cemitério abalou essa minha crença, que agora desmoronava frente a beleza que se estendia no horizonte.
Não --pensei --o mundo não precisa de mim para existir, eu sou completamente dispensável, e ele é lindo assim mesmo.
A grandeza e beleza daquela cena contrastava com a minha pequenez, minha insignificância, e eu não me importava por ter perdido o meu trono de senhor do universo, pelo contrário, me alegrava como nunca perante tudo aquilo.
Se eu já conhecesse a Bíblia, citaria o Apóstolo Pedro, quando viu Jesus coberto de glória no monte da transfiguração, diria como Ele: "Senhor, é bom que estejamos aqui, vamos fazer uma tenda para para ti e para os outros".
Pedro teve, como era seu costume, a atitude mais humana nessa hora, queria "capturar" aquele momento, para poder desfrutar dele sempre.
Era o que passava pela minha cabeça, me mudar para aquela pequena tapera na beira da estrada, nadar todas as manhãs naquele rio, passar os dias contanto as nuvens no céu, ter como companheiro o gavião e o vento, pois somente eles poderiam compartilhar comigo o sentimento que eu tinha por aquele lugar.
Queria ver meu rosto naquele momento. Aposto que qualquer um que visse aquele rosto jovem, em seu momento de maior felicidade, extenderia o seu tempo de vida por mais dez anos no mínimo.
Foi o primeiro passo, que recordo ter dado, em direção ao céu.
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