quinta-feira, 4 de maio de 2006

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Para quem não está afim de rolar a página até 3 anos atrás, data em que esse post foi originalmente publicado.

Pequenos Rituais

Um dia frio de outono sempre me lembra do Japão, dos melhores momentos que tive no Japão.
Me recordo que quando me sentia bem, em algum dia de folga, gostava de praticar um certo ritual.
O dia propício para o ritual deveria seguir as devidas especificações: deveria ser um dia de outono, ou inverno, de preferência bem frio, mas claro e com sol. Um pouco de vento seria o toque final, que tornaria o dia perfeito.
Quando tal dia chegava, e me encontrasse de bom humor (sempre que havia dias assim eu estava de bom humor), então começava o ritual me vestindo bem, nada muito social, para não parecer ostensivo, mas pelo menos roupa nova e de boa qualidade, (algo muito social ou muito causal tiraria a sensação que queria produzir, conforto) apenas uma calça de sarja normal, um blusão com gola de alta e uma jaqueta, tipo parca, comprida. As vestes variavam, mas era algo semelhante a isso.
Ai saia, pegava o trem (denxa) e ia para algum lugar da moda, tipo Shinjuko ou Asakusa. Harajuko era o meu "point" preferido nessas horas.
Caminhava por ruas desconhecidas, desbravadas; comprava alguma coisa, qualquer coisa, de algum lojista desconhecido só para puxar conversa (uma vez comprei um isqueiro numa tabacaria, apesar de não fumavar). Fazia isso com uma única intenção, para ver o quanto eu poderia prender o japonês com uma conversa. Certa feita demorei uma hora inteira, façanha bem difícil, quando se trata de um japonês de Tokyo em hora de trabalho (mas desconfio que ele era do interior).
Essa parte do ritual durava umas duas horas, além das conversas, passeava pelos parques, visitava algum templo, andava pelas calçadas. Queria ouvir vozes, as vozes barulhentas e alegres das estudantes do colegial, as vozes lânguidas, experientes e irônicas dos mais velhos, até mesmo as vozes rudes e grosseiras de alguns "salary man", gostava de distingui-las dentre as outras, também me divertia ver que muitos japoneses, supondo que eu não entendia o que falavam, deixavam escapar coisas que normalmente não falariam na presença de estranhos, quanto mais na presença de algum "gaijin".
Quando começava a escurecer, procurava algum café bem acolhedor, desses que derramam luzes quentes e agradáveis nas calçadas semi-escurecidas.
Entrava, pedia algo para comer, uma torta de morango ou um "cheese cake", nada muito chique, pois nem saberia dizer os nomes dessas iguarias mais sofisticadas. Mas de novo, pedia sempre algo de boa qualidade, se o cheese cake fosse um desses que se comprava no 24 horas, então não voltava mais no recinto. Mas no Japão esses cafés dificilmente enganam, você sabia, pelas luzes quentes e agradáveis, o quando era bom.
Pedia a torta e um café, ou um cappuccino (quando as luzes me diziam que o cappuccino dali era bom), para acompanhar, e tirava mais duas horas, primeiro provado a torta, sem a mínima pressa, deixando que o sabor se imponha lentamente, que derreta na boca, que adoce junto com o corpo, os meus pensamentos - "Como é bom estar vivo!". Quem não provou as tortas japonesas, macias, saborosas, não sabe exatamente o que estou falando, mas pode, claro imaginar um substituto a altura.
Alguns vêem num alimento apenas o que a palavra abriga, uma ração, algo feito para alimentar, fornecer energia para o corpo, quem entende apenas isso, pobre alma, é imaturo para desfrutar ainda o melhor da vida, pois não a vê na sua totalidade, mas sua aparência mais vulgar, mais barata.
Termino a torta, bebo o café com espaçosas tragadas, deixando que me aqueça o corpo e que estimule a mente com seu gosto forte e único.
Relaxo, peço mais um café, enquanto puxo da minha mochila algum livro agradável, naquela época de novo convertido, muitas vezes uma Bíblia (coisa estranha de se imaginar no Brasil, mas algo que passaria desapercebido no Japão, um país de colecionadores de maluquisses), algumas vezes livros sobre teologia. Alguns relatos de pessoas nos campos missionários tiveram especial efeito para mim naquele tempo.
Mas a leitura não era o ponto alto, mas sim as, sensações, as pessoas. Observava as que entravam, as que saiam, via pelo tipo de gente, que lugar era esse que eu estava, e quase sempre via o meu tipo de gente, jovem, informal. Observava as pessoas que passavam pelas ruas, agora totalmente escuras, via suas faces passarem apressadas. Não tentava ler-lhes os pensamentos, como fazem muitos observadores de faces pelo mundo afora, os japoneses são treinados desde a meninice a não demostrarem no rosto o que se passa em seu coração, permitir-se tal coisa seria sinal de fraqueza, de falta de domínio.
Ficava vendo as suas roupas, suas atitudes, e posturas. Por essas coisas se via mais facilmente que tipo de pessoas eram, ou, muito provavelmente, que tipo de pessoas elas queriam que eu pensasse que fossem.
Terminava, pagava a conta, agradecia e ia embora.
Voltava para casa e ficava deitado na cama, pensando horas no que eu tinha visto, nas conversas que tinha tido, nas impressões que tomei, na brisa fria do inverno que chegava, na luz do estabelecimento sobre a calçada, no gosto da torta, do café.

Pensei em fazer o mesmo em Porto Alegre de vez em quando, desisti hoje da idéia. Não é a cidade adequada para esse pequeno ritual.
Quando se vai ao centro, quase não se encontra cafés aconchegantes, na maioria são lugares de servir "alimentos", ração. Restaurantes por quilo e sanduíches de R$ 1.50 saturam a vista e embrulham o estômago. Pode-se achar até um café chique, desses que servem expressos a 6 reais, que enchem as ruas da calçada da fama, mas dificilmente são lugares acolhedores, a luz na calçada não tem a tonalidade certa, são cafés "das elite", feitos não para uma pessoa se sentir a vontade, mas para dizer que uma pessoa (a que senta lá dentro) é melhor que a outra (a que passa lá fora). Ver os rostos dos transeuntes também não é um passatempo agradável por aqui. Não há mistério na multidão que caminha a sua volta, nós, brasileiros, gaúchos ou não, trazemos em nossas faces, ostensivamente estampado, o nosso estado de espírito, não deixando muitos mistérios para serem desvendados.

Um comentário:

Belcrivelli disse...

Que raro é encontrar atualmente alguém que saiba realmente saboriar um alimento ou o prazer de uma conversa! As pessoas vivem seus cotidianos de casa-trabalho e vice-versa, esquecendo-se desses momentos de contemplação. Não sabem admirar um pôr-do-sol ou um jardim florido. Vivem para pagar contas, ver novela ou futebol, por filhos no mundo e vê-los independentes. Enfim, apenas passam pela vida, sem realmente valorizar as sensações, os momentos e as pessoas. Há tanto na vida para se viver e tão poucos percebem isso...